No teatro, aprendi que a capacidade de gerar empatia no público é fundamental. Antes, o ator precisa ser capaz de sentir como o personagem, para depois o espectador poder sentir como o ator que sente como o personagem. Uma complexa e estranha transferência de sentimentos, que tende a funcionar (ou não) na proporção da qualidade da atuação.
Nem todo método de treinamento de atores é assim, claro. Tampouco nem toda linguagem teatral pressupõe identificação e empatia. Basta pensar em Brecht, que propunha o distanciamento, visando a capacidade crítica do espectador. Mesmo Aristóteles, na Poética, falava em catarse e parecia pouco se importar se nos sentimos como o Édipo ou a Electra. Para ele, vermos o sofrimento das personagens nos permitiria expurgar de nós mesmos o que guardamos de terrível.
Minha postura como espectador está, sem dúvida, mais próxima de Brecht do que de Aristóteles. De qualquer forma, longe da empatia. Normalmente racionalizo ao máximo ao ver uma peça, um filme ou, ainda mais, ao ler um livro. Catarse, sinceramente, não sei nem o que é. Mas talvez saiba o que é o assombro e sinto, isso sim, um estranho e profundo silêncio depois do contato com uma grande obra. Ainda que a obra seja um mísero haicai.
De todo modo, a empatia sempre me pareceu algo positivo. Grandes problemas do mundo, como o racismo, a xenofobia, a intolerância religiosa, as guerras, a violência de gênero, a perseguição política, etc. poderiam ser “resolvidos” se o mundo tivesse mais empatia, ou seja, se a nossa cultura “treinasse” as pessoas para ter essa capacidade de sentir como o outro se sente.
]Supondo que assim fosse, a quem caberia esse treinamento? A pedagogia, a filosofia, a arte?
Embora tenda a concordar com a importância da empatia, sempre fui relutante em trazer essa responsabilidade para a arte. Afinal, enquanto políticos demonizam adversários e economistas transformam famintos em números, me parece injusto deixar todo o fardo da geração de empatia para os pobres (nos dois sentidos) artistas. Encontrei um nome de peso para corroborar com essa minha desconfiança: Terry Eagleton.
Em seu Como ler literatura, ao analisar uma citação da escritora George Eliot, que defende que seus livros buscam “que os leitores se tornem mais capazes de imaginar e sentir as tristezas e alegrias daqueles que são diferentes deles em todas as coisas”, ele é taxativo:
“Esse caridoso argumento é muito louvável. Mas é também muito equivocado. Em primeiro lugar, nem toda arte literária é um convite para nos identificarmos com seus personagens. Em segundo lugar, a empatia não é a única forma de compreensão. (...) Sófocles não nos convida à empatia com Édipo. A peça quer que a gente sinta piedade pelo protagonista condenado, mas há uma diferença entre sentir por alguém (simpatia) e se sentir como alguém (empatia).”
Em outro momento, Eagleton usa um exemplo desconcertante: “Os nazistas mataram judeus não porque não conseguissem se identificar com o que os judeus sentiam. Estavam pouco se importando com o que eles sentiam”. De fato, parece pouco provável que o problema dos nazistas era falta de empatia, assim como de qualquer outro que jogue uma bomba em Cabul, em Crimeia ou em Gaza. Aliás, saber como o outro sofre parece ser um combustível para certas pessoas agirem.
Assim como em outras opiniões acerca da literatura, tendo a concordar com Eagleton. Aliás, se um faminto precisa de comida, pouco importa se quem fornece o alimento tenha sentido ou não a sua fome. Em suma, parece existir uma questão ética que pode (e deve) se desenvolver com ou sem a capacidade de sentir como o outro. Racionalizar sobre a injustiça e buscar ações que a combatam tem, como mostra história, mais potência do que mera empatia de ricos em relação aos pobres, por exemplo.
Como leitor e escritor, gosto de pensar que a literatura é livre do fardo de ter que gerar empatia. Mais do que isso, que é livre do fardo de ter que ensinar qualquer coisa. A literatura nos faz imaginar, nos faz pensar, nos faz sentir, nos faz refletir, nos faz ter uma atenção linear a partir de um conjuntinho minúsculos de símbolos (dezenas de letras e alguns poucos sinais, no nosso alfabeto). E isso já faz valer a sua existência.
Não espere de um livro aquilo que só a vida pode te dar.